Produzindo missô em Kyoto
- Roberto Maxwell
- há 4 dias
- 10 min de leitura
Uma jornada em busca dos sabores caseiros no interior do Japão
com fotografias de Ilana Liechtenstein

Naquela manhã de fevereiro, o céu azul disfarçava o frio que a neve acumulada no trilho único da ferrovia teimava em nos lembrar. Às 10:44, o trem da linha Miyatoyo tinha partido pontualmente da estação de Amanohashidate. Da janela frontal da composição, ao lado do assento do maquinista, o trem amarelo de um único vagão seguia entre colinas florestadas e pequenas áreas planas do interior da província de Kyoto.

Estamos — eu e a fotógrafa e guia de turismo Ilana Lichtenstein — na bucólica região de Tango, distante pouco menos de três horas da agitação da Capital Milenar, uma das cidades japonesas que mais recebe turistas, independente da época do ano. Nosso destino é a estação de Kyotango-Omiya, onde uma experiência vai nos conectar a uma época não muito distante, em que as famílias ainda preparavam em casa um dos ingredientes mais importantes da dieta dos japoneses: a pasta de soja que é a principal matéria-prima da sopa de missô, item onipresente nas refeições.
Descemos na pequena estação e o silêncio é a principal marca da paisagem do local. O único som marcante é o do trem partindo, uma cena que insisto em registrar com a câmera do celular todas as vezes que venho para uma região como esta. Nunca se sabe quando uma linha do interior do Japão vai encerrar suas atividades por causa da depopulação. É como se cada uma dessas escassas viagens aos confins do país fosse a última oportunidade de trafegar pelos trilhos que os cortam.
São poucos os que desembarcam em Kyotango-Omiya, em especial numa manhã de domingo. Por isso, a nossa demora para sair chamou a atenção do Duncan, do qual inicialmente vimos apenas a cabeça na entrada/saída da estação, conferindo se tínhamos mesmo chegado no trem combinado. Simpático, o nosso gigante anfitrião nos cumprimentou com um sorriso de boa vontade e nos acompanhou para fora da estação. Já no carro, ele nos conta que é irlandês e que junto com a mulher, Junko, se mudou para a região de Kyotango, depois de uma temporada no seu país de origem.
A viagem segue e o comércio do entorno da estação rapidamente dá lugar a áreas de plantação, vazias a esta época do ano, um tempo importante de descanso para a terra nem sempre respeitado nas grandes produções comerciais. Poucos minutos depois, o carro embica numa ladeira que me faz ficar ainda mais grato pelo Duncan ter vindo nos buscar na estação. “Não é qualquer um que sobe aqui depois da neve que tivemos ontem”, conta ele.
Curiosamente, são poucos os vestígios dela no asfalto da pirambeira, mas não demora muito para a gente ver onde parte da neve foi parar. Agora, estamos no quintal da antiga casa de madeira que é o nosso destino de hoje. Ele é dividido por um muro com um telhadinho que só faz sentido quando o vemos coberto de neve, nesta época do ano. Uma porta, também protegida por um telhado maior que o do muro, leva ao jardim que também está totalmente branco. Certamente ele é a vista que teremos da sala de estar da casa.

Aqui nos despedimos do Duncan, que segue para outros afazeres e nos deixa nas mãos da Junko, uma simpática senhora baixinha e bem magra, com aparência jovial e um sorriso encantador. É ela que vai nos oferecer a experiência de hoje. O casal também se despede e nós entramos na casa, curiosos para saber mais sobre esta mulher e para aprender o que ela tiver para nos ensinar sobre a comida caseira japonesa.
Tradições feitas em casa
O Japão é um dos destinos turísticos mais cobiçados do momento e, sem dúvidas, a gastronomia é um dos maiores atrativos. Grande parte dos visitantes vêm em busca da vibrante cena de restaurantes de grandes cidades como Tóquio e Osaka. O que pouca gente se toca é que a gastronomia japonesa — como a de muitos outros lugares do mundo — foi forjada ao longo dos séculos, dentro das casas, entre um almoço e outro, com as possibilidades oferecidas pela natureza e pelas condições econômicas de cada local, de cada família. Antes dos restaurantes japoneses frequentarem guias internacionais e serem ranqueados com estrelas, as pessoas comiam aquilo que a terra dava e, muitas vezes, diante da escassez, elas criavam alternativas para transformar o pouco em suficiente e fazer do disponível algo saboroso.
Dentro da casa da Junko, é possível sentir os ecos deste passado. Depois de passar pelo genkan, a entrada de piso de chão onde deixamos nossos sapatos, passamos por uma porta de correr de madeira e papel que nos leva a uma sala que parece intocada por décadas. O chão de tatami aconchega os pés, mesmo com a baixa temperatura da casa. Isolamento térmico é algo que as antigas casas japonesas não conhecem. Por isso, o sofá de couro, os móveis e ornamentos em madeira, as caligrafias na parede e tudo o mais preenchem o espaço e trazem aquele quentinho que o ambiente precisa.
Passando por outra porta de correr, chegamos à ampla cozinha que será o nosso laboratório a partir de agora. Ela tem uma bela área de serviço com um balcão de madeira de lei, incomum nas casas japonesas, um arranjo que a Junko fez para receber seus clientes. As paredes variam entre o completo vazio e estantes com inúmeros utensílios cuidadosamente organizados. No alto, cravado em uma das ripas de madeira que formam o telhado, está o kamidana, um altar xintoísta consagrado aos deuses que protegem a casa e a família.
Agora posicionada atrás do balcão, a Junko conta um pouco da sua história. Nativa da cidade de Kyoto, ela se formou professora primária antes de ingressar no universo da gastronomia. Foi na Capital Milenar que conheceu o Duncan, um ator com a missão de transmitir os conhecimentos sobre o teatro inglês aos japoneses. Uma amiga em comum os apresentou para que ele ensinasse inglês a ela. Porém, a conexão entre os dois foi se tornando mais profunda. Meses depois, o Duncan teve que retornar ao Reino Unido e, mesmo assim, o interesse mútuo não arrefeceu. Passado mais um tempo, eles acabaram se casando. Com isso, o Duncan se mudou para o Japão já que, agora, a Junko, cuja mãe era falecida, cuidava do pai doente e da loja de quimonos da família.
O casal teve filhos. Mesmo longe de casa, o Duncan continuou se dedicando às artes, trabalhando como dublador e narrador. Com o tempo, o negócio de quimonos foi saindo de cena e Junko decidiu estudar gastronomia. Ela se especializou em culinária ocidental, especialmente em panificação, e junto com uma amiga criou um negócio que fornecia comida irlandesa para pubs locais.
A experiência na gastronomia em Kyoto serviu de cartão de visitas para a Junko quando a família, com os filhos já adolescentes, decidiu se mudar para Dublin. Agora, ela iria compartilhar no estrangeiro os conhecimentos culinários da sua terra natal, dentre eles a profunda relação que os japoneses têm com a fermentação.
Herói nacional
Aspergillus oryzae é o nome científico de um fungo muito difundido na Ásia, onde ele é parte de uma longa tradição de fermentação. Chamado pelos japoneses de koji, o microrganismo é usado na produção de ingredientes indispensáveis da gastronomia nipônica como o molho de soja shoyu e o vinagre de arroz. Além disso, o koji é o agente sacarificador essencial na produção do saquê, do shochu e do awamori, as bebidas alcoólicas originárias do Japão. Por tantos serviços prestados, o koji é chamado pelos japoneses de ‘fungo nacional’ e, como tal, não estaria ausente na produção do missô.
Do outro lado do balcão da bela cozinha, a Junko começa a colocar grãos de soja já cozidos em duas bacias. Esta leguminosa é como uma eminência parda para nós, brasileiros. Nas nossas mesas, ela só aparece discretamente, na forma de óleo para cozinhar. Ou seja, embora onipresente nos preparos, não conseguimos nem reconhecer sabores e aromas da soja quando ela aparece em um prato.
Porém, a relação do brasileiro com o grão vai mais além. A oleaginosa é matéria-prima para uma infinidade de outros produtos que consumimos, de biocombustíveis a cosméticos, além de ser um dos principais elementos da ração de vários animais que comemos. Não podemos nos esquecer ainda do enorme impacto da soja na economia brasileira. Em 2023, a cadeia produtiva desta leguminosa contribuiu para quase 6% do PIB brasileiro. Em outras palavras, a soja ocupa um espaço imenso nas nossas vidas no Brasil, mesmo que não nos demos conta disso.
Contrariando tudo isso, a primeira vez que eu comi grãos de soja foi no Japão. Aqui, a leguminosa consumida ainda na vagem verde é chamada de edamame. Levemente temperada com sal, ela é um tira-gosto essencial nos izakayas, os botecos japoneses, harmonizando muito bem com a cervejinha. Perdido nesses pensamentos, só volto à nossa cozinha quando a Junko me entrega o balde com mais ou menos meio quilo de grãos ainda quentes, junto com um amassador.
O trabalho é simples: esmagar o máximo possível a soja, sem deixar pelotas, para formar uma pasta uniforme. Começo a usar o amassador e o grão cede facilmente. Porém, num dado momento, a massa começa a se acumular no utensílio, dificultando o trabalho. Providencialmente, a Junko deixou uma colher na minha estação de trabalho para ajudar no processo, mas ela me diz que posso usar a mão, não apenas para limpar o amassador mas, também, para fazer a massa. Agora sim a brincadeira começa a ficar divertida.
O grão vai se desfazendo nas minhas mãos e o aroma, que é muito parecido com o do feijão, fica ainda mais evidente. Aliás, nessa hora começo a pensar no fato de que ambos são originários de plantas da mesma família. Sendo assim, seria possível fazer missô de feijão? “O missô não precisa ser feito só de soja”, diz a Junko, como se estivesse ouvindo o meu pensamento. Ela continua contando que, quando morou na Irlanda, ensinou a técnica japonesa do missô a pessoas que a testaram com grão-de-bico. Mesmo no Japão existem missôs feitos de outras matérias-primas como a cevada e o arroz, em alguns casos misturados à soja e, mais raramente, puros.
A única coisa em comum entre os diversos tipos de missô é o uso do koji que entra em seguida na receita. O fungo é adicionado à massa inoculado em arroz cozido. Neste caso, o arroz fica endurecido, como se tivesse sido cristalizado. Como o koji transforma o amido do arroz em açúcar, os grãozinhos ficam até adocicados. Nas receitas caseiras é normal usar o arroz com koji vendido em supermercados no formato de um torrão, que lembra o miojo tão consumido pelos brasileiros. O fungo aparece nas prateleiras por aqui da mesma forma que o fermento biológico fresco é presente no comércio em países da Europa ou mesmo no Brasil. Antes de serem inseridos na massa, os torrões brancos precisam ser debulhados para separar bem os grãos de arroz e espalhar o fungo uniformemente. Depois de deixá-los bem soltinhos, misturo tudo com as mãos até ficar virar uma pasta coesa. Em seguida, colocamos tudo num saco com zíper e fechamos. Agora, o trabalho de produzir o missô está nas mãos da natureza.

O meu é melhor que o teu
Vinte anos no Japão me ensinaram que uma sopa de missô é o melhor correspondente gastronômico a um abraço. Ela é feita com a pasta de soja, um fundo do tipo dashi e outros elementos que você tem na sua cozinha. Pode ser legumes, aparas de carne ou peixe, pequenos mariscos… Porém, depois do missô, o importante nesta sopa onipresente nas refeições dos japoneses é mesmo o dashi. Nisso a Junko também é craque.
Ela tira de uma das prateleiras potes de vidro com concentrados que serão a base do dashi que será usado na nossa sopa. São preparos com algas e outros ingredientes que a Junko deixa curando por tempo indeterminado. Eles funcionam como poções mágicas, nas quais o tempo e a temperatura incidem provocando reações químicas que geram sabores. Provo uma das poções, feita com dois tipos de alga, shoyu, saquê culinário mirin e algumas coisas mais. O resultado é um líquido espesso, com dulçor, acidez e, claro, muito umami, o quinto gosto identificado por um cientista japonês há quase 120 anos e ainda um hoje tratado como um desconhecido pelo ocidente.
Umami vem de ‘umai’, uma palavra nipônica que significa ‘delicioso’. Ele é presente em alimentos que consumimos com frequência no Brasil como queijos, carnes bovina e suína e tomate. O umami é um sabor que, isolado, parece até sem graça. Porém, nas receitas, ele realça outros sabores, em especial o sal de que gostamos tanto.
A Junko segue preparando a sopa de missô do nosso almoço. Enquanto faz o dashi usando as poções ricas em umami dos seus potes, ela nos diz para escolher entre três pastas de soja diferentes, todas produções caseiras. Os missôs têm cores, texturas e sabores distintos, resultantes da receita e da ação do tempo. É aqui que a conversa toma um rumo interessante. Tendo o meu missô e o da Ilana sido produzidos no mesmo dia, com a mesma composição e ingredientes, eles ficarão com o mesmo sabor, aroma e textura?
“Não”, diz a Junko. “Cada missô é único”, ela continua. Isso porque os microrganismos vão ser fortemente influenciados pelo ambiente onde a fermentação ocorre, no caso a minha casa e a da Ilana. Sem contar com outros fatores como o contato das nossas peles com os ingredientes no preparo da massa. Cada corpo contém uma flora que é como se fosse uma digital. No Japão existe uma expressão, temae missô, que parte do princípio de que a pasta de soja é diferente de acordo com quem a produz. Em tradução livre, a expressão vai mais além e quer dizer que o melhor missô é aquele que a gente mesmo faz. Por isso, temae missô pode ser usado como uma forma de se auto vangloriar por ter feito algo, o que não é muito bem visto numa sociedade que valoriza, pelo menos de forma pública, a humildade.
O almoço fica pronto. Numa bandeja laqueada preta, a Junko nos serve dois bolinhos de arroz oniguiri, uma pequena porção de conserva de legumes, uma posta de cavalinha e, claro, a sopa de missô. É ela que eu provo imediatamente. O aroma fermentado e as notas de umami na boca se destacam. Este é o típico sabor de comida feita em casa. Tudo é muito simples, óbvio, bem diferente do que se espera de um restaurante laureado da cidade, com seus ingredientes caros e apresentação refinada. Porém, é certo que estamos diante de uma refeição que faz muita falta nestes dias de hoje, cercados que estamos de preparos industrializados e pedidos feitos às pressas pelos aplicativos de entrega. O que a Junko nos serve é aquela comida que alimenta o corpo e, também, a alma.

Sendo assim, começo a sonhar com o meu missô. A Ilana me diz que só vai abrir o dela quando chegar o aniversário dela, em dezembro. Eu sequer pensei em quando vou provar o meu. A Junko recomenda uns seis meses de maturação, mas diz que podemos provar antes, se quisermos. Me perco em pensamentos, cheio de dúvidas e empolgação. Será que vai dar certo? Qual sabor este missô terá? Poderei me vangloriar dele? São respostas que eu só devo descobrir daqui a uns seis meses e não há outra alternativa senão esperar.
Serviço
Experiência de missô/comida caseira com a Junko Hamilton
Para reservar as aulas diretamente com a professora, acesse o site.
Para reservar um passeio completo na Kyoto à Beira Mar, contate a Tabiji.
Siga a Junko no Instagram.
Ilana Lichtenstein é fotógrafa, jornalista e guia de turismo. Com seu olhar único, ama contar histórias sobre Kyoto, a cidade pela qual se apaixonou. Siga no Instagram @ilanalichtenstein.
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