Colunista convidado ajuda a entender o passado, o presente e o futuro da bebida alcoólica mais conhecida do Japão
O saquê de hoje é radicalmente diferente de como ele era feito ao longo da história milenar do Japão. Somente nos últimos 100 anos que uma conjunção de novas tecnologias, tendências de mercado, circunstâncias infelizes, decisões erradas e, finalmente, uma geração de produtores abertos às experiências resultou na bebida como conhecemos.
Origem controversa
As teorias de origem do saquê vão do óbvio ao peculiar, no entanto ninguém sabe exatamente como o saquê surgiu. Uma teoria popular, que também embrulha o estômago, é de que o arroz era mastigado ainda cru (as enzimas da saliva transformam o amido em açúcar), cuspido e deixado para fermentar naturalmente de um dia para o outro. É algo plausível, já que este era um método popular de produzir bebidas alcóolicas na Ásia.
Outra teoria diz que se usava, na produção, arroz mofado por acidente. Há ainda a teoria que acredita que as técnicas foram trazidas da China, de onde veio boa parte da cultura japonesa. Seja qual for a verdadeira origem, os primeiros registros de saquê são datados do século 8, quando Nara era a capital do Japão. Naquela época, um "departamento oficial de saquê" era responsável pela produção da bebida, que era utilizada nos rituais xintoístas.
O polimento do arroz era difícil e não era uma prática comum. Naquela época, até o farelo do arroz (a "casca") era utilizado. Por isso, o saquê era muito diferente da bebida delicada que encontramos atualmente.
O saquê começa a ter cara de saquê
Somente no Período Edo (1603–1868), quando o clã Tokugawa dominou o Japão levando a uma época de relativa paz e prosperidade, que a indústria do saquê desenvolveu algumas estruturas fundamentais que existem até hoje.
A produção, que era feita cinco vezes ao ano, passou a ser realizada somente no inverno; a técnica de esterilização por calor foi descoberta (300 anos antes de Louis Pasteur entender os efeitos da pasteurização); o sistema dos toji, os mestres de saquê, foi criado; e, ainda, o processo de filtragem do saquê se tornou comum.
A Era Meiji
O xogunato Tokugawa, que comandava o país desde o início do século 17, chegou ao fim e foi substituído pelo imperador Meiji em 1868. O novo governo realizou reformas radicais relacionadas ao sistema de impostos e de propriedade da terra. Pela primeira vez, cidadãos comuns poderiam ser donos de terra e os proprietários passaram a ser pagantes de impostos, ao invés dos trabalhadores rurais. Mudanças de larga escala costumam gerar vencedores e perdedores e, neste caso, não foi diferente. Então, para evitar revoltas dos que se sentiram prejudicados, o novo governo passou a reduzir gradualmente a taxação da terra.
Para repor as perdas causadas pela redução nos impostos, a gestão Meiji teve que buscar uma nova fonte de recursos e a encontrou na taxação de bebidas alcóolicas. Com isso, qualquer pessoa com capital disponível poderia produzir saquê. O resultado foi que, em 1904, durante a Guerra Russo-Japonesa, o saquê era responsável por impressionantes 30% da arrecadação total do governo, uma cifra inacreditável para os dias de hoje. Como é possível imaginar, por causa da importância do saquê como fonte de arrecadação, mudanças rápidas aconteceram na produção da bebida.
Para aumentar a qualidade (e, com isso, vendas e receita), o governo japonês introduziu uma série de medidas: padronização dos processos e da produção das culturas para o starter, isolamento e, também, o cultivo das melhores leveduras; além da criação do National New Sake Awards, que premia os melhores saquês do país e completou 110 anos em 2021.
Porém, nem tudo melhorou. Por conta da dificuldade em coletar taxas, o doburoku — uma espécie de saquê feito em casa por pequenos proprietários e camponeses e considerado uma antiga tradição — se tornou ilegal. No entanto, de um modo geral, as diversas mudanças tiveram um impacto positivo na qualidade do saquê.
O saquê antes e depois da guerra
A onda em busca do saquê perfeito terminou com o início da Segunda Guerra Mundial. O saquê é feito com arroz, que também é um alimento básico no Japão; com a escassez iminente do cereal, outras formas de produzi-lo tiveram que ser encontradas. O resultado disso foi o "sanzo-shu", que era basicamente saquê com álcool adicionado, água, glutamato monossódico, sacarídeos e acidulantes. Era uma solução adequada à época, mas que acabou gerando um declínio radical na qualidade do saquê muitas décadas depois.
Junto com o surgimento do sanzo-shu, o período viu uma queda no número de fábricas existentes, de 8 mil para 4 mil, e o surgimento do contrabando como forma de fugir do aumento contínuo de impostos na produção e venda do saquê.
Mas antes da queda, o período pós-guerra trouxe uma nova explosão no consumo do fermentado. Por causa das geladeiras, a refrigeração passou a estar disponível o ano todo; o cup sake (saquê vendido em copos) foi lançado; e restrições na comercialização da bebida foram retiradas. Com o aumento da riqueza no Japão, a demanda por saquê aumentou, atingindo o pico de 17,6 milhões de hectolitros em 1973.
A ocidentalização ajuda a selar o declínio do saquê
Desde então, o saquê segue em franco declínio. No final do século 19, correspondia a 98% das vendas de bebidas alcoólicas no país. Em 1970, este número era de 30% e atualmente fica em apenas 6,5%. Uma das principais razões para a diminuição no consumo de saquê foi, simplesmente, a ocidentalização do Japão. A cerveja ficou popular junto com os refrigeradores e foi se tornando ainda mais quando o produto enlatado foi inventado.
O vinho entrou na moda, bem como o whisky, juntamente com o shochu e os coquetéis feitos com uma série de outras bebidas. Estes produtos eram novos ou estavam em voga e o saquê ficou com a malfadada imagem de bebida para biriteiros e homens velhos. Garrafas grandes, de 1,8 litros, passaram a ser associadas ao excesso de bebida, especialmente pelos mais jovens.
A deterioração da imagem foi outro dos principais fatores que contribuíram para o declínio do saquê. O sanzo-shu, remanescente das necessidades da época da guerra, nunca deixou de ser produzido, mesmo depois que o arroz voltou a ser abundante. Barato e capaz de oferecer alta margem de lucro para os produtores, a bebida passou a ser associada à ressaca.
A má imagem, os erros de marketing e uma quantidade cada vez maior de bebidas estrangeiras entrando na moda fizeram sua parte e, desde os anos 1970, o consumo de saquê nunca mais parou de cair no Japão. Atualmente, somente cerca de 1200 fábricas seguem em atividade, em comparação com as 8 mil do pré-guerra ou com as mais de 90 mil produtoras de vinho da França.
Outra reminiscência da época da guerra que perdurou por anos foi o sistema de taxação do saquê que determinava a gradação do produto pelo valor do imposto pago, sem levar em consideração a qualidade ou outro critério, subjetivo ou objetivo. Sendo assim, um saquê de segunda classe poderia ser considerado tão bom, ou até melhor, que um rótulo de primeira classe. Felizmente o sistema foi, enfim, revisado.
A explosão do ginjo e a introdução do saquê "premium"
Foram as fábricas, não o governo, que começaram a trazer boas soluções para o falido sistema de categorização do saquê por valor de imposto pago. Métodos como o junmai (puro arroz), ginjo (alto grau de polimento do arroz) e honjozo (adição de álcool) começaram a ser usados, oferecendo aos consumidores a tranquilidade de ter padrões objetivos relacionados à produção dos saquês disponíveis no mercado.
Por fim, o governo acatou as mudanças e, em 1990, o sistema de taxação foi abolido, com o reconhecimento formal das oito categorias de saquês premium que já estavam sendo utilizadas pelas fábricas.
A popularização de máquinas automáticas de polimento do arroz, uma nova espécie de levedura e a invenção de um novo método para a produção se encontraram com a bolha econômica japonesa levando, no início dos anos 1980, a uma espécie de renascimento: o "boom do ginjo".
Altamente aromático, nítido no paladar e fácil de beber, o ginjo segue popular até os dias de hoje e quase sempre domina as reportagens sobre a bebida. Somente nos últimos tempos que uma outra pequena fatia do mercado, com saquês premium experimentais, vêm mostrando um sinal de recuperação.
Parte deste renascimento se deve a uma nova geração de produtores. Influenciados pela experiência com produtos ocidentais como o vinho, e tendo vivido fora do país, eles estão redescobrindo a magia e o potencial por trás das diversas categorias de saquê, não só do ginjo. São produtores abertos a experiências com diferentes métodos de produção.
Novos tipos de koji (fungo utilizado na fermentação), que trazem mais acidez; atenção ao blending e experiências com tipos de arroz totalmente diferentes (como o arroz vermelho e o preto) são alguns dos métodos que estão sendo encontrados na produção atual de saquê.
Ou seja, mesmo que o saquê esteja ainda num momento difícil, muitos especialistas acreditam que o produto vai ressurgir. Eles destacam o aumento da demanda pelo produto na Ásia e nos Estados Unidos, as competições internacionais de saquê baseadas na harmonização da bebida com a gastronomia ocidental e o surgimento de fábricas de saquê na França e na Austrália, além de diversos outros pontos.
Ainda é impossível saber se o saquê vai se tornar realmente popular ou ser capaz de fazer a transição de produto de nicho para estar nas mesas dos restaurantes no ocidente. Mas é certo que o fermentado merece esta posição, já que oferece um sabor de apelo internacional que se harmoniza facilmente com a comida, mesmo sendo completamente diferente do vinho ou da cerveja.
Benjamin Knopp é especialista em saquê e um dos sócios da Kurashu, uma loja online de saquês no Japão.
tradução: Roberto Maxwell (@robertomaxwell)
edição: Barbara Dell (@paradigeriromundo)