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Vielas de Kagurazaka: lugarzinhos escondidos aqui e ali (foto: Agência Photo AC)

KAGURAZAKA
LADEIRA DOS DEUSES

Mais conhecido pela atmosfera francesa, um dos bairros mais charmosos da capital acolhe lugares surpreendentes: ruelas cheias de história, uma loja especializada em música brasileira e obras contemporâneas da arquitetura japonesa

texto: Piti Koshimura

Não precisa estar há muito tempo no Japão para saber que música brasileira é assunto sério por aqui – e faz parte do som ambiente de bares descolados e comércios chiques às populares lojas de 100 ienes. Mas talvez poucos japoneses conheçam tão bem nosso patrimônio nacional como Ryosuke Itoh, músico e proprietário da Taiyo Record, uma loja de discos especializada em música brasileira de Kagurazaka, a leste de Shinjuku.

 

Minha trajetória se cruzou com a de Itoh-san em janeiro de 2014, quando a loja funcionava como um dos pontos de venda para um show que o músico paulistano Dudu Tsuda faria em Tóquio com a participação de Maki Nomiya, vocalista da extinta banda japonesa Pizzicato Five. Entrei no pequeno endereço para comprar ingresso e fiquei encantada: atrás do balcão, uma capa de disco do Tom Zé que, junto com Fernanda Takai, Mombojó, Céu e outros artistas expostos nas prateleiras, me trouxe uma lembrança acolhedora dos eventos que eu costumava acompanhar na Choperia do Sesc Pompeia, um dos meus lugares preferidos em São Paulo, minha cidade natal.


Estava feliz por conhecer um local que prestigiasse com tanto carinho a música brasileira. Queria dizer a ele que estava maravilhada por aquele cantinho, que trouxera uma familiaridade gostosa com meu país. Limitada por um japonês de iniciante, porém, só consegui dizer “suteki na mise”, ou, “Que loja bacana!”. A primeira visita a Kagurazaka ficou restrita à Taiyo Record. Mas foi assim, sem querer, que descobri um dos meus bairros favoritos em Tóquio.

Dia de luz, festa de sol

Na entrada do show, que seria no Instituto Cultural francês, perto da loja, quem recolheu meu ingresso foi o próprio Itoh-san, que também era o produtor do evento. O sorriso de quem havia se lembrado da nikkei brasileira amiga do Dudu me deixou confiante para estender o contato com um pedido de entrevista. Estava curiosa para saber mais sobre o seu interesse pelo Brasil e, na época, caçava assuntos de matérias para o Sem Fio, um canal de YouTube que reunia brasileiros morando fora e do qual eu participava.
 

O músico aceitou meu convite prontamente e, em um sábado ensolarado, me recebeu na Taiyo Record com sua esposa Shiho-san,
também à frente da loja. Entre outras coisas, Itoh-san contou que havia notado a mudança de consumo dos clientes após o grande terremoto de 2011. Se, antes, eles iam atrás de batucada e estilos ritmados; depois da tragédia passaram a apreciar um estilo mais calmo, como vozes femininas acompanhadas de piano. Ele também me impressionou com a sensibilidade de distinguir canções contemporâneas feitas por artistas do Rio, de São Paulo ou do Recife, por exemplo.

Ryosuke Itoh e Shiho: casal apaixonado pela música brasileira

A entrevista rendeu, mas o melhor não estava no roteiro. Ao fim da
conversa, Itoh-san perguntou: “Tudo bem se tocarmos uma música”? Evoquei minha herança japonesa e até que contive a empolgação – na verdade, era o que eu mais queria. Só não quis fazer o pedido diretamente, com receio de dar mais trabalho ao casal, que já tinha dedicado algumas horas do dia à gravação da entrevista.

 

Sentados em banquinhos na área externa, Shiho-san, acompanhada
de uma flauta transversal, e Itoh-san, no violão, me presentearam com um show privativo. A música escolhida foi Kobune, uma versão em japonês do próprio Itoh-san do clássico O Barquinho, eternizado por Nara Leão. Embora a câmera diante do rosto disfarçasse minha expressão, o brilho dos raios de sol que se refletiam em um vaivém na flauta de Shiho, acompanhando o balanço de suas mãos, me emocionou. Que alegria estar ali, apenas presente.

Ares de nobreza

A história de Kagurazaka remonta ao Período Edo (1603 - 1868), quando Tóquio passou a ser o centro político do Japão. No século 17, a principal rua do bairro foi construída como acesso a um dos portões do Castelo de Edo, atual Palácio Imperial. A aura nobre da região, onde viviam samurais de alto escalão, se misturava à fama de
distrito de entretenimento, com casas de chá, teatros e performances de gueixas. A cena se complementava à atividade de templos budistas e santuários xintoístas que, de tempos em tempos, promoviam os matsuri, os tradicionais festivais japoneses.

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Lanterna na entrada do Santuário Akagi (foto: Agência Photo AC)

De volta à Kagurazaka

Dois anos depois, Kagurazaka deixaria de ser, para mim, apenas o bairro da Taiyo Record. Em uma segunda temporada no Japão, fiz uma série de vídeos em Tóquio sobre arquitetura, assunto pelo qual sou apaixonada. Em uma conversa com o amigo japonês Mizuaki Wakahara, fui convencida a visitar o Akagi Jinja, santuário xintoísta
reformado por Kengo Kuma, um dos maiores nomes da arquitetura japonesa atual. Um recinto sagrado da religião nativa projetado por
um arquiteto contemporâneo? Aquilo me intrigou bastante. E, para a minha surpresa, o Santuário Akagi fica a 300 metros da loja do Itoh-san, ótimo pretexto para mais uma visita.


O Akagi Jinja tem uma história curiosa. Foi construído no século 14 e, após processos de destruição e reconstrução ao longo dos séculos,
passou a abrigar um jardim de infância, que acabou desativado em 2009 por falta de demanda. A reforma completa foi concluída no ano seguinte com a assinatura de Kuma, que faz releituras contemporâneas de elementos tradicionais japoneses. A madeira clara, o uso de vidro e as linhas retas e clean dão uma cara bem diferente do que estamos acostumados a ver nos santuários xintoístas. Mesmo assim, o Akagi Jinja não deixa de abranger as estruturas básicas de construções do gênero, como o temizuya, fonte de limpeza e purificação, as estátuas de koma-inu, os guardiões com formas de leão e cachorro, e os toro, lanternas que iluminam o caminho. Depois de conhecer o modernoso santuário, fui conferir uma então novidade do bairro, sugerida pelo Itoh-san: o La Kagu, empreendimento que ocupa um galpão dos anos 1960, erguido para ser o armazém de uma editora de livros, a Shinchosha. Fica quase em frente à estação de metrô de Kagurazaka.

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La Kagu: o antigo galpão foi transformado em espaço de engajamento (foto: Piti Koshimura)

Passadas cinco décadas, a editora decidiu transformar o galpão em um espaço que fosse ponto de engajamento para a comunidade local. Há uma seleção bacana de objetos de design, café e uma área de eventos, como palestras e workshops. Boa parte do térreo é ocupada por uma unidade da Akomeya, loja especializada em arroz e que vende outros ingredientes da culinária japonesa, além de abrigar um restaurante próprio – de ótima qualidade, por sinal.


Também encabeçado por Kengo Kuma, o projeto mantém os traços originais do prédio, mas com o toque contemporâneo que caracteriza o trabalho do arquiteto. A parte mais bonita da obra é a grande escadaria que conecta, por fora, o térreo e o andar superior. Kuma descreve as formas orgânicas da sucessão de degraus como sendo “o despejar de um punhado de terra”.

Perfume francês

O nome La Kagu faz referência a um apelido carinhoso do bairro, conhecido como o quartier francês de Tóquio. A comunidade do país europeu se instalou entre 1960 e 1970, atraída pela inauguração do primeiro liceu francês do Japão.

Mas em meio aos bistrôs,
pâtisseries e boulangeries, dá para sentir o clima de Japão tradicional, evocado por lojas de panos tingidos por técnicas antigas, chás, doces e acessórios típicos.

Essa concentração de negócios tradicionais remete a uma outra história. Em 1923, a capital japonesa foi atingida por um grande terremoto. Kagurazaka, no entanto, sofreu danos relativamente pequenos se comparados a outras regiões. Por isso, lojistas e
donos de restaurantes de Ginza, que já despontava na época como um reduto de comércio refinado, acabaram escolhendo o bairro para reconstuir seus estabelecimentos.

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Atmosfera tradicional: convite a um passeio de quimono (foto: Agência Photo AC)

Mikoshi acima

O nome do bairro teria origem nos matsuri, os festivais de origem xintoísta. Kagura é uma arte performática de origem xintoísta que envolve música, teatro e dança. A palavra é composta pelos ideogramas de divindade (神) e de divertimento (楽), relaxamento. Seria, portanto, uma performance para entreter os deuses. Zaka, que significa ladeira, faz referência à topografia da área. Reza a lenda que, durante as procissões dos matsuri do bairro, era impossível carregar ladeira acima o mikoshi, espécie de santuário móvel que chega a pesar mais de uma tonelada. Mas ao som da música de kagura, como que por intervenção divina, os participantes conseguiam prosseguir com o caminhar ritmado, levando o pesado santuário nos ombros. Daí, então, viria o nome “ladeira de kagura”.

Serviço
Caminhos tortuosos

Descobri Kagurazaka em etapas. Na quarta temporada no Japão, em 2018, por exemplo, recebi uma ótima dica quando menos esperava.
 

Durante um teste em uma escola de japonês no bairro vizinho de Iidabashi, comentei com a professora que uma das coisas que eu mais gostava de explorar eram os yokocho ou “rua laterais”. Trata-se de becos ou ruelas onde havia restaurantes, bares e outros negócios, muitos deles ilegais, e que hoje se tornaram atrações pelo visual antigo. A professora, então, me perguntou se eu já conhecia as yokocho de Kagurazaka.

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Calçamento de pedra nos becos de Kagurazaka (foto: Agência Photo AC)

Precisei ser guiada pelo Google Maps para achar as entradinhas dessas ruas escondidas. O nome de uma delas, Kakurenbo (esconde-esconde), dá indícios do labirinto que formam – dizem que o caminho entrecortado era de propósito, para despistar os nobres ao adentrar a área das gueixas.

 

Diferentemente dos becos da Omoide Yokocho, de Shinjuku, com suas lanternas e izakayas, as ruelas e Kagurazaka têm um charme sofisticado. Com pavimento de pedras e entradas discretas para restaurantes tradicionais de comida kaiseki e casas de chá, lembram o clima da antiga capital, Kyoto. Por um momento, me senti fora de Tóquio.

TAIYO RECORD

Tokyo-to Shinjuku-ku Yaraicho 139

taiyorecord.com (em japonês)

LA KAGU/AKOMEYA

Tokyo-to Shinjuku-ku Yaraicho 67

akomeya.jp (em japonês e inglês)

SANTUÁRIO AKAGI

Tokyo-to Shinjuku-ku Akagi Motomachi 1-10

akagi-jinja.jp (em japonês)

KAKURENBO YOKOCHO

Tokyo-to Shinjuku-ku Kagurazaka 3

Pesquisadora e criadora de conteúdo, PITI KOSHIMURA é autora do blog e podcast Peach no Japão. Mora em Tóquio há dois anos, onde atua como consultora em projetos culturais e curadora da Momonoki, plataforma de cursos online sobre o universo japonês.

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