GASTROROLÊ
JORNADA À MESA
(SOBRE DUAS RODAS)
Ao menos quando se trata de comida, Tóquio é um mundo que pode ser degustado por anos – e pedalando
texto: Carlos Fukuy
ilustrações: Renata Cabrera
Uma vida dividida em ciclos de seis anos — depois de um tempo pulando de cidade em cidade, estabeleci que esse seria período para descobrir, conhecer e aproveitar os lugares onde morei. No Brasil, foram seis anos no Sul, seis no Nordeste e outros seis em São Paulo. Cresci assistindo à minha família se mudar com frequência e, durante esses períodos, me acostumei a mudanças repentinas de casa, escola, círculo social, clima e hábitos alimentares. Até que veio o Japão.
Mesmo sendo neto de japoneses pelo lado paterno, não havia tido contato com a cultura. Na verdade, meu pai parecia mais nordestino que minha mãe, cearense arretada. Shoyu, peixe cru, tofu e missô – o conhecimento sobre a cozinha japonesa era tão restrito quanto o que eu sabia sobre o país. Ao desembarcar do outro lado do mundo pela primeira vez, há 25 anos, não conhecia nem o idioma nem ninguém. Como o meu trabalho não exigia comunicação, a principal preocupação era: o que comer?
Kore, kore, kore
A primeira casa foi na província de Ibaraki, cerca de duas horas ao norte de Tóquio, em uma cidadezinha que não existe mais por ter sido anexada ao município vizinho. Havia pouquíssimos restaurantes, todos com cardápio exclusivamente em japonês. Durante seis meses, o jeito foi me virar com as lanchonetes que tinham fotos no menu. Eu comia sanduíche quase todos os dias. Os pedidos eram à base do kore (isto, em japonês).
A gente aponta a figura no cardápio, diz pro atendente “kore” e ele sabe o que trazer. O tempo foi passando e a vergonha da situação me levou a aprender o katakana, o silabário usado para escrever palavras estrangeiras. Ler e saber o que estava pedindo, ainda que continuassem sendo os sanduíches, me fez sentir como se fossse local.
Pouco tempo depois, me mudei para uma cidade maior, na província vizinha de Tochigi. Tinha até estação de trem, que até então eu não havia andado. Diante desse novo horizonte eu só pensava em uma coisa: chega de sanduíche! O roteiro gastronômico passou a incluir cardápios em romaji, como os japoneses chamam o alfabeto latino. Além de fotos maiores e mais opções de pratos: massas, pizza e filés. Teria eu encontrado, finalmente, meu paraíso gastronômico?
Com o tempo, ganhei segurança e passei a me aventurar em restaurantes menores com menu sem fotos e os pratos grafados em katakana, hiragana (outro dos silabários japoneses) e nos temidos kanji, os ideogramas. Foi quando conheci e comi coisas que jamais pediria em outros tempos. A mais marcante dessas descobertas, com certeza, foi o lámen, a famosíssima sopa à base de ossos ou pescados servida com macarrão (e que ninguém se atreva a comparar essa delícia com o miojo brasileiro!).
Foi paixão à primeira tigela. Passei a comer lámen, um dos meus pratos favoritos, de três a cinco vezes por semana. Mesmo com essa frequência, raramente eu repetia um restaurante, costume que tento manter até hoje.
Durante as andanças pelo Sol Nascente – morei em outros lugares depois de Tochigi – comer fora passou a representar muito mais que matar a fome.
Tornou-se uma experiência, capaz de melhorar o astral e propiciar conhecer pessoas e celebrar. É algo que me restaura (como o próprio sentido da palavra restaurante) e que acabou por se tornar a minha profissão.
Gastrobike
O trabalho em alguns restaurantes e 17 anos de bagagem no Japão finalmente me levaram a Tóquio. Enviei as malas pelo correio e enfrentei de bicicleta os 380 quilômetros que separam Nagoya, na província de Aichi, da capital japonesa. Foram três dias comendo e dormindo no caminho, digerindo a decisão de me mudar para a maior metrópole do mundo. Depois da jornada e de dois dias inteiros dormindo, eu iria enfrentá-la oito quilos mais magro. Ao acordar, o que eu mais precisava era comer – a palavra restaurar nunca fez tanto sentido.
Pesquisar restaurantes em Tóquio é se deparar com um universo, no sentido mais infinito da palavra. Comecei pelas hamburguerias, presentes em listas separadas por áreas, avaliações, temas... Como a fome cabia em boa parte delas, escolhi logo três (listadas no fim dessa matéria) e subi na bicicleta. Lembro bem da sensação de intercalar as pedaladas com comida boa e paisagens urbanas pelo caminho. Devorei os hambúrgueres, sem deixar de prestar atenção nas casas de lámen, sorveterias, cafés, pizzarias e restaurantes de todas as partes do mundo. Agora, sim, estava num verdadeiro paraíso gastronômico.
As rotas de três restaurantes por dia se tornaram rotina e ganharam novos temas: asiática, europeia, sul- americana e por aí vai. Fui bolando, também, rotas geográficas e Shibuya, Shinjuku e Setagaya, por exemplo, também ganharam seus roteiros. Sempre de bike. Os passeios turísticos e culturais, claro, ganhavam pitadas gastronômicas: entre parques e templos sempre buscava uma lojinha de karaage, a porção de frango frito, ou um sorvete para refrescar. Descobri os paraísos verticais, edifícios com vários andares de restaurantes, e também a comida das ilhas que fazem parte da Baía de Tóquio. Essa profusão de sabores virou minha cabeça e construiu meu paladar, que já vinha ganhando referências desde os sanduíches de Ibaraki.
Aqui, eu viajo da China ao Nepal, passando pelo Brasil, em um só bairro.
E se o assunto for lámen, o Japão todo cabe na capital: já provei o de Hokkaido, de Fukuoka, de Aichi e de muitas outras províncias. Já provei lámen da Califórnia e lámen premiado com estrela Michelin.
Aliás, três sugestões de casas de lámen estão listadas no fim da matéria. A propósito, a edição Tóquio 2021 do celebrado guia gastronômico lista 212 restaurantes estrelados (12 deles com a classificação máxima, de três estrelas), número superior a qualquer outra cidade do planeta. A mesma onde é possível almoçar tacos mexicanos, lanchar um sanduíche israelense e jantar o melhor sushi da sua vida. Aqui, sinto que posso pedalar por mais alguns ciclos de seis anos e ainda não será suficiente. Mas eu e minha bicicleta estamos preparados.
Para você começar a sua jornada
HAMBURGUERIAS
CASAS DE LÁMEN
Há quase duas décadas no Japão, CARLOS FUKUY já exerceu muitas atividades na Terra do Sol Nascente. Atualmente, é chef de cozinha e pode ser visto pedalando em busca de experiências gastronômicas únicas em Tóquio.