padrões de beleza
A PELE QUE HABITO
Retroalimentado pela indústria de cosméticos, o ideal japonês da cútis alva e sem manchas acaba sendo uma forma de opressão às mulheres
texto: Piti Koshimura
fotos: Meg Yamagute
colaborou Anna Ligia Pozzetti
"São suas manchas, não?" Com naturalidade e sem pudor algum, a vendedora da loja de cosméticos quis saber o que mais me preocupava em relação ao meu rosto. Talvez as manchinhas estivessem mais ressaltadas que o normal, pois estávamos em Tóquio no auge do verão, época em que o sol não dá sossego e os termômetros beiram 40 graus. Com a produção de melanina a todo vapor, minhas sardas parecem sair da toca e fazer a festa.
Ainda assim, fiquei surpresa com a assertividade da pergunta pois a verdade era que, de certa forma, me sentia bem. "Não tenho nenhuma preocupação em especial", disse. Pela expressão da moça, entendi que a minha resposta não era a mais esperada.
Era como se seu olhar desconfiado me dissesse: "como você ousa dizer que não tem defeitos?"
Hoje percebo que nesse momento minha segurança caiu do cavalo. Embora usasse protetor solar todos os dias desde os 20 anos e soubesse que pele branca é o ideal de beleza no Japão, foi aí que passei a me questionar: devo me preocupar mais em relação a essas marquinhas?
Sombrinha: acessório "indispensável" no verão japonês
Além de reforçada por beldades japonesas e pela difusão massiva de tratamentos estéticos e produtos de clareamento da pele, a valorização da cútis sem marcas aparece na palavra em japonês usada para definir esses focos de melanina concentrada. Sardas, marcas de sol e manchas, que, para nós, ocidentais, têm conotações diferentes, são todas colocadas no mesmo balaio: shimi, mesmo termo usado para falar de uma mancha de vinho tinto na camisa branca, por exemplo – algo negativo, que estraga e compromete a integridade da beleza.
Acerca das sardas, a palavra mais usual é sobakasu, termo usado originalmente no processo de fabricação do macarrão soba para designar a casca escura do grão de trigo sarraceno descartada após a etapa de secagem e extração – algo tampouco lisonjeiro.
Ideal da pele clara atravessa os séculos
De acordo com a antropóloga Laura Miller, autora do livro Beauty Up: Exploring Contemporary Japanese Body Aesthetics, o padrão estético feminino no Japão vem passando por mudanças ao longo da história. Se no Período Heian (794-1185) as beldades tinham rostos arredondados, no Período Edo (1603-1867) o ideal de beleza era ter um rosto mais fino e delicado. Um quesito, no entanto, não mudou até o presente: a predileção pela pele branca.
A alvura da pele era almejada tanto por mulheres quanto por homens da nobreza japonesa da era pré-moderna e passou a ser um marcador de gênero somente no Período Meiji (1868-1912). É interessante pensar que, até a Revolução Industrial, a mulher comum não tinha acesso a ideais de beleza pelos quais somos bombardeadas na era do Instagram, independente de classe social. Ainda segundo a autora, após o início do processo de abertura e industrialização iniciada no Período Meiji, a pele branca passou a ser um marco de feminilidade e também de "japonicidade" entre, também, as mulheres de classe média do país.
Miller comenta ainda que o cruzamento de pesquisas sobre beleza não aponta para nenhum padrão universal, exceto pele uniforme e sem manchas. Ao unir esse aspecto à valorização da brancura da pele no Japão, conseguimos entender porque é tão comum ver mulheres nas ruas usando luvas até quase o ombro, mangas compridas e sombrinhas durante o verão em todo o país.
Para entender um pouco mais sobre como esse padrão estético influencia a vida das mulheres no arquipélago hoje, conversei com duas amigas japonesas.
HARUNA YAMAZAKI, 33
gerente de produtos
"Nunca estive em uma posição na qual me sentisse 100% segura da minha beleza."
Por ser de uma cidade litorânea, ao sul de Tóquio, Haruna acredita que seu olhar para a beleza seja um pouco diferente do da maioria dos japoneses. Antes mesmo de começar a entrevista, ela elogiou o bronze da fotógrafa Meg Yamagute, que pedala por Tóquio usando blusas e vestidos sem manga em dias ensolarados.
Um fato curioso da infância de Haruna parece ter contribuído para o apreço dela pela pele morena: quando tinha por volta de 5 anos, a escola que frequentava promoveu uma espécie de concurso para eleger a criança mais bronzeada da turma. Talvez por ter perdido a competição, Haruna passou a tomar gosto pela coisa. Quando adolescente, chegou a fazer sessões de bronzeamento artificial inspirada pela onda das ganguro, tribo da contracultura japonesa em que garotas ultra-bronzeadas se posicionavam contra o padrão da pele alva.
Ao se aproximar dos 30, porém, ela passou a se preocupar mais com a pele e as pequenas manchas que seu rosto foi revelando. "Decorrentes, talvez, do excesso de sol de quando era mais nova", lamenta. Para evitar que as marquinhas formem grandes manchas escuras, além de usar protetor solar, uma vez por mês ela se submete a um tratamento facial a laser que promete clarear as manchas e deixar a pele uniforme, reduzindo a capacidade de produção de melanina. Ao investir num plano anual do tratamento, Haruna espera se sentir melhor em relação à própria aparência. "Nunca estive em uma posição na qual me sentisse 100% segura da minha beleza."
AKIKO YAMAGUCHI, 37
tradutora e intérprete
[Nos EUA] "me sentia mais sexy e atraente."
Ainda pequena, Akiko entendeu que suas sardas não eram apreciadas no Japão. Ouvia de outras crianças que sua pele era suja, entre outros absurdos, e cresceu detestando as marquinhas no rosto. Foi só aos 20 anos, em uma viagem à Austrália, que uma chavinha girou: pela primeira vez na vida, suas sardas foram elogiadas. Desde então, ela passou a cultivar uma relação mais harmônica com a própria pele.
Há dois anos morando em Tóquio depois de uma temporada de cinco em Nova York, a tradutora diz se sentir dividida em relação a padrões estéticos e ideais de beleza. Para ela, a pele bronzeada é bonita e traz um ar saudável – associações comuns em países ocidentais, já que uma estada no litoral remete à ideia de férias, descanso e poder aquisitivo. Nos Estados Unidos, aliás, ela gostava de curtir uma praia e se sentia à vontade para usar blusas regatas e expor mais a pele, sem medo de ser julgada. "Lá, me sentia mais sexy e atraente."
De volta ao Japão, porém, Akiko prefere evitar a exposição ao sol e usa protetor solar mesmo em dias chuvosos, para manter a pele bem clarinha. Curtir uma praia? Não mais. Talvez por ter tido contato com padrões de beleza internacionais, ela afirma que gosta das suas sardas. No entanto, por viver no Japão e acreditar que vai se fixar no país, acha melhor se adequar aos padrões locais.
E nem é preciso ligar a TV ou abrir uma revista para sentir a pressão de manter uma pele clara e sem marcas, já que ela costuma receber conselhos para fazer tratamentos de clareamento e remoção das sardas de familiares e amigas próximas. Apesar de sentir incomodada, Akiko acredita que há boa intenção por trás desses comentários – "elas se preocupam comigo e estão tentando ser gentis."
O mesmo desconforto bate quando ela vê as prateleiras de farmácias e lojas de departamento abarrotadas de produtos para clareamento da pele e eliminação de manchas, principalmente no verão. "Poxa, sardas podem ser bonitas!"
Indústria do bihaku
O mercado japonês de cosméticos é o segundo maior do mundo e só fica atrás dos Estados Unidos. Parte do faturamento da indústria, que em 2017 chegou à marca de 36 bilhões de dólares, é representada pelos produtos de clareamento ou branqueamento de pele, conhecidos pelo termo bihaku. A palavra, que rotula os cosméticos da categoria desde o início do século 20, é composta pelos ideogramas de beleza e branco e pode ser traduzida por algo como "belamente branco".
Prateleiras das drogarias abarrotadas de produtos para clareamento de pele
Após mais de 100 anos da adoção do termo, a indústria começa a questionar seu uso. Com a repercussão da campanha Black Lives Matter, a Kao Corporation, gigante do setor e dona de marcas como Bioré, Kurél e Kanebo, anunciou no ano passado que deixaria de usar a expressão na embalagem de seus produtos e que substituiria whitening ("branqueador") e lightening ("clareador") por brightening ("iluminador"). "Ao usar o termo bihaku, não queríamos transmitir a mensagem de que pele clara é melhor", declarou na ocasião o diretor executivo da marca, Yoshihiro Murakami.
Mas ocorre que os produtos seguem os mesmos e continuam à disposição nas prateleiras – para o descontentamento de Akiko. A questão que fica é: será, então, que mudanças na terminologia são suficientes para a empresa levantar as bandeiras de inclusão e diversidade?
Talvez seja um pontapé inicial. Mas ainda me pergunto se algum dia estaremos 100% seguras da nossa beleza quando tudo ao redor parece apontar em nós aquilo que não é considerado belo. Assim como a Haruna, tenho medo de que minhas manchas no rosto se transformem em borrões escuros, e por vezes, me pego escolhendo filtros do Instagram que me deixam com menos marcas. Seria essa uma versão mais bonita para mim mesma ou apenas um tipo de beleza conivente com as expectativas alheias?
Mulheres livres de padrões de beleza: mudanças à vista
PITI KOSHIMURA é criadora de conteúdo e atua como consultora de projetos culturais. Também é autora do blog e podcast Peach no Japão e curadora da Momonoki, plataforma de cursos online sobre o universo japonês.
Neta de japoneses, MEG YAMAGUTE vem descobrindo, desde que chegou ao Japão em 2006, o sentido de muitas tradições adotadas por sua família . Como guia turística compartilha suas descobertas em tours incríveis.